Banalização da diferença: a falácia da igualdade

BANALIZAÇÃO DA DIFERENÇA: A FALÁCIA DA IGUALDADE

O período pós-moderno, moderno-líquido, moderno-tardio, moderno-reflexivo (seja ele definido de acordo com Bauman, Giddens, Habermas etc.) se considerado como o período contemporâneo da história, é o período dos grandes discursos sobre direitos sociais. O fim das grandes guerras, a criação da ONU e a somatória das revoluções ocorridas no período histórico relativo ao início da idade moderna, juntamente com a globalização, a partir das grandes navegações, modificaram drasticamente as relações sociais, por meio da tecnologia, em especial os meios de comunicação de massa. Essas mudanças desencadearam grandes rupturas e mudanças, principalmente a individualização. As ideias de Freud trouxeram uma nova maneira de se conceber os outros sujeitos sociais, garantias e direitos foram concedidos a vários indivíduos, em nome da democracia e da alteridade, diferentemente dos períodos anteriores, em que os sujeitos sociais não possuíam voz, não havia a noção de “indivíduo”, de infância, o limite dos “outros” não era definido.

No período “moderno-tardio”, grandes movimentos surgem, como as questões relativas aos gêneros e ao feminismo. Novas vozes são dadas a muitos sujeitos anteriormente inaudíveis. As ciências sociais, por meio dos estudos culturais, trouxeram uma visão êmica ao período moderno tardio, ou seja, a vários sujeitos é dada voz; esse é o novo paradigma pós-estruturalista, concebe valor à subjetividade. A ciência não é mais compreendida nos modelos positivistas e objetivos, em busca de uma verdade absoluta e inquestionável; ao contrário, tende agora às várias vozes sociais, não apenas aquelas com mais poder, como a voz do pesquisador, do etnógrafo que, em nome da ciência, levaria o conhecimento aquelas culturais que “não se conheciam”, aqueles indivíduos que “não sabiam sobre si mesmos”. Da mesma maneira, na linguística, em relação à interpretação de um dado texto, não seria a visão unilateral de seu escritor a que prevaleceria. A experiência do outro na construção de sentidos de um texto é importante, pois a subjetividade permite várias interpretações. A verdade não é apenas uma, existem várias verdades e elas dependem de vários pontos de vista. A própria ciência hoje concebe a verdade como mutável e subjetiva, embora muitos defendam absolutamente as suas “verdades”/correntes/escolas. Nessa perspectiva, as teorias a respeito de processos de comunicação também foram alteradas. No paradigma moderno e “estruturalista”, havia um modelo para se explicar o processo de comunicação, que seguia a seguinte lógica: no processo de comunicação há um emissor que emite a mensagem a um receptor que a recebe. No entanto, no pós-estruturalismo e na “modernidade tardia”, verificou-se que não há emissores e receptores, todos são interlocutores, pois a noção de emissores e receptores implica em relações assimétricas.

Apesar dos avanços, esse cenário de direitos e garantias sociais tem sido banalizado em nossos tempos. Hoje, as diferenças não são mais tratadas como DIFERENÇAS, eles são banalizadas e equivalem ao discurso ideológico da igualdade, para justificar o “direito” que os outros têm de não aceitarem, por exemplo, o DIREITO do “outro”, especialmente, no caso do Brasil, que se justifica no seguinte discurso jurídico: “todos são iguais perante a lei”. A grande quantidade de voz que é dada aos outros sujeitos sociais, a valorização da subjetividade e de outras formas de conhecimento transformaram a discussão das minorias em um paradoxo. Enquanto grupos minoritários exigem DIREITOS, as maiorias exigem o “direito” de autoafirmação e perpetuação de seu poder. Ora, se todos são diferentes e, dessa maneira, todos são iguais perante a lei e os direitos/diferenças são INFINITOS, não existem mais diferenças, pois elas se esvaziaram na falácia da igualdade. Há três exemplos importantes para que essa explicação possa ser justificada.

Há pouco, uma garota negra passou pelo sistema de cotas em uma universidade do sul do país, no entanto, uma outra garota, em uma posição no vestibular abaixo daquela, não foi aprovada. Essa mesma garota entrou na justiça e uma juíza deferiu o seu pedido ao considerar o sistema de cotas inconstitucional, uma vez que segundo a juíza, “todos são iguais perante a lei” (PERCEBAM QUE A PRÓPRIA CONSTITUIÇÃO BRASILEIRA PERMITE VÁRIAS INTERPRETAÇÕES). As cotas, no Brasil, surgiram para garantir direitos a indivíduos que são desprestigiados. Isso ocorre devido ao fato de no Brasil, essa parcela da população (QUE NÃO É UMA MINORIA, É UMA MAIORIA EM RELAÇÃO A SUA QUANTIDADE E NÃO EM RELAÇÃO AOS SEUS DIREITOS: O BRASIL É UM PAÍS DE MAIORIA NEGRA E NÃO” BRANCA”) não ter as mesmas chances de ascenção social, além de serem estigmatizados em outras esferas sociais, em relação àqueles que são uma minoria (QUE SE DIZ “BRANCA”). É claro, que esse discurso surge na afirmação de que a universidade é o local onde todos os jovens devem estar (é a banalização da educação no Brasil). As cotas não sugiram para impedir o direito da garota que entrou na justiça ou daqueles, que na valorização de suas subjetividades ou verdades, utilizam falaciosamente de suas vozes e de seus direitos (que são infinitamente concedidos). As cotas surgem para representar uma MINORIA SEM VOZ. Se a educação terá o rendimento baixo, essa não é a questão, até porque isso não faz diferença, a educação no Brasil já não é de qualidade; não será o negro, em si, o responsável pela sua degradação. Se as pessoas estão preocupadas com a qualidade de ensino, deveriam reivindicar os seus direitos por uma educação de qualidade e não pelo IMPEDIMENTO de acesso de uma minoria à educação, seja ela de qualidade ou não, piore ela ou não. Se a preocupação em relação às cotas é exclusivamente em relação à qualidade e não um discurso camuflado de ideologias (no sentido negativo, de relações de poder assimétricas) em relação à falácia da banalização dos direitos, as pessoas não deveriam estar tão imediatamente ansiosas, pois investimento em educação demanda muito tempo. Para serem “iguais perante a lei”, os negros e outras minorias necessitam ocupar espaços igualitários e não subespaços ou espaços marginalizados. Inclusive porque isso não representa essa nação. O que afinal é o Brasil? É ainda um lugar algures, dependente e preso aos paradigmas do século XVIII? Que identidade brasileira é essa que tenta se homogeneizar sendo que a sua característica evidente é a miscigenação? As cotas são uma medida temporária para que se dê voz às minorias (às minorias, não às maiorias, porque as maiorias já têm voz, elas não precisam de mais voz). As maiorias não precisam ter medo de chegar à posição de minoria. A voz das minorias não diminui a voz da maioria. E autoafirmação é uma maneira politicamente correta para gerar EXCLUSÃO, para se impor um poder que já se tem (os “comunistas” não comem “criançinhas” como se pensava no passado). E sim, o objetivo é desarticular a burguesia (que se acha “branca” e europeia ou norte-americana) desse país para que a posição de sexta potência econômica mundial brasileira não seja ambivalente em relação a um abismo de desigualdades.) Afinal, se o brasileiro se espelha tanto em modelos exteriores, a própria noção de desenvolvimento oriunda do exterior considera desigualdade social uma grande barreira a qualquer classificação de desenvolvimento. É por isso que o Brasil apesar de ser um país economicamente rico, não é um país desenvolvido. Se é necessário que se espere várias décadas para que haja mudanças na educação, que haja várias décadas de cotas e quando a qualidade da educação melhorar e o abismo socioeconômico no Brasil diminuir, as cotas serão encerradas. Para representar uma minoria sem voz, as cotas não são APENAS MECANISMOS DE INSERÇÃO ECONÔMICA, porque ainda aqueles indivíduos negros e ricos são minoria (não por não serem pobres). E eles o são porque são estigmatizados e podem estar em posição econômica igual a de um rico, mas não deveriam estar “na memória coletiva”, pois são considerados inferiores e há uma forte resistência de um grupo que não se diz popular e negro (brasileiro), um grupo elitista que se diz “branco”, e que utiliza o discurso de um sobrenome europeu para estar algures, um grupo que não valida as suas minorias semelhantes como aquelas representantes de suas próprias conquistas ou genuinamente representantes de suas riquezas.

O segundo exemplo é relativo às várias vozes do grupo religioso fundamentalista de evangélicos, liderado pelos pastores Silas e Marco Feliciano. O Brasil tornou-se o grande espetáculo pós-moderno quanto à banalização das “vozes” de seus “cidadãos”. Depois que o direito à união civil de homossexuais foi inserido ao sistema jurídico brasileiro, surgiram “várias vozes” que dizem exigir direitos para si mesmos, por exemplo o direito de se prevalecer os modelos modernos de uma família que não é mais concebida nos modelos “ultrapassados”, a família nuclear – constituída por um estado teocrático na idade média, que matou mais do que a primeira e segunda guerra mundiais juntas. Esta não representa as sociedades modernas, porque a maioria delas é LAICA. Com a queda do sistema católico, especialmente com a reforma-protestante, que originará novas interpretações religiosas e por sua vez novas religiões, o Brasil e outras nações têm tentado reconstruir o cenário teocêntrico da idade média por meio do fundamentalismo (E um fato engraçado é que ensino religioso na maioria das escolas do Brasil é o ensino ideológico da religião “cristã”, as outras religiões não têm voz ou cria-se um estereótipo de que elas representam o grande inimigo de seu deus: o “demônio”). Todos são iguais perante a lei”, por isso um evangélico fundamentalista pode, por exemplo, assumir um cargo de representatividade de direitos humanos (essa é a maior falácia de todas na história desse país) e fazer uma grande reza IDEOLÓGICA (no sentido negativo, contrário à democracia) para invocar, na ESPLANADA DOS MINISTÉRIOS, um estado TEOCRÁTICO enterrado. Sim, eles podem exigir os seus direitos, mas essa não é a questão. Eles não estão exigindo direitos para ELES, pois eles não SÃO MINORIAS, eles estão EXIGINDO CONTRA O DIREITO DOS OUTROS, ESSA É A GRANDE QUESTÃO. ISSO É BANALIZAÇÃO DA DIFERENÇA. É a mesma questão da “CURA GAY”, termo distorcido pela mídia propositalmente para gerar ironia. Esse projeto de lei não existe em nome de uma minoria que quer ter o direito de ser “curada”. Não existem manifestações (E NÃO DEVERIAM EXISTIR) de minorias gays que querem ser curadas por psicólogos/psiquiatras, pois se as diferenças são infinitas e todos são diferentes (e a cura gay é contraditória em relação a existência do termo gay, como minoria), não há porque haver diferenças. Enfim, talvez essa seja uma discussão muito além dessa gente brasileira! Eu às vezes me pergunto, porque ainda insisto na educação desse país… O Brasil é o mais puro exemplo de construção do caos. Está longe de qualquer comparação às nações que ele tanto diz serem melhores e desenvolvidas, especialmente com uma mentalidade tão colonial. E não é por engano que a identidade nacional aqui é fragilizada, como é possível haver identidade nacional em uma terra dessas? Onde plantada uma ideologia, tudo floresce e tudo se dá?

Outro exemplo clássico da banalização do termo diferença é em relação a um aluno da Universidade de Brasília, que dias após um protesto de uma minoria exigindo os seus direitos, lançou o seguinte cartaz de “manifestação”/ de “contra-argumentação”: ORGULHO HÉTERO. Com certeza esse sujeito tem o direito de ter orgulho de si mesmo, de seus olhos azuis, de seu cabelo loiro, de sua juventude, de sua altura valorizada, de sua pele bem cuidada, de seu corpo malhado de uma boa alimentação, de sua heterossexualidade ou de qualquer outra característica que o defina em sua própria “plenitude”. Mas, quando um cartaz desses é erguido, ele é esvaziado, afinal, autoafirmação é BANALIZAÇÃO DA DIFERENÇA. Quando uma minoria levanta um cartaz dizendo ter orgulho de algo que a sociedade lhe diz ser ruim e feio, que ela considera inferior (na verdade, que ela mesma menosprezou, matou e inferiorizou por vários séculos), um cartaz de orgulho de uma subcondição é levantado em protesto, mas quando um cartaz de um grupo maioritário, em sua plenitude de direitos, é levantado para contra-argumentar a voz de outros, não há invocação de DIREITOS, não há luta por nenhuma questão, há o vazio, o esvaziamento de um DIREITO e a banalização da diferença; a falácia da igualdade, pois todos sentem-se minorias, ainda que não sejam ou sentem-se iguais, mas não são, pois não estão em uma condição de protesto, eles não têm o que protestar, quando da exigência de direitos dos outros, a não ser que eles tenham medo de a sua posição de poder ser apagada. É a noção pós-moderna de risco. “Viver é muito perigoso”, sim. Mas o risco aqui refere-se ao medo de as pessoas não poderem mais subjugar as outras minorias, de não poderem mais dizer “esse preto infeliz” ou “esse viado”, ainda mais quando eles acreditam que esses termos são representativos dessas minorias. Em uma parada de ônibus, um senhor de idade utilizou a mesma lógica supracitada para questionar o fato de hoje não ser possível mais falar nada para ninguém. Ele disse que os negros e homossexuais não deveriam sentir-se ofendidos quando chamados de “pretos” ou “viados”, pois esses adjetivos representam as suas condições. Ele disse que se alguém dissesse para ele que ele é hétero ou branco (na visão de o que ele considera “branco”), ele não se ofenderia (É claro que ele não se sentiria ofendido de ser chamado de algo que simbolicamente é validado e existente). Isso é interessante de se analisar, pois na lógica desse mesmo senhor, se alguém dissesse para ele naquele momento que então ele poderia ser chamado de “VELHO”, de “FEIO”, de “GORDO” com “CARA DE NORDESTINO”, não haveria problema, pois isso é o que ele é, mas será que ele não se sentiria ofendido por isso? Quando alguém diz: “seu preto…” essa expressão nominal já é problemática em si, embora seja relativa a real cor de um indivíduo. No entanto, ela só pode ser dita porque pressupõe uma condição inferior universal daquele que é subjugado, pressupõe o preconceito e um sujeito em condição desprestigiada. Obviamente, se alguém diz “seu branco”, essa expressão não faz sentido, pois não gera universalização simbólica negativa daqueles que possuem essa característica, pois não se construiu socialmente uma relação simbólica de desprestígio para o “branco”, pelo contrário, construiu-se uma universalização simbólica positiva, de que o branco é bom, educado, inteligente, genuinamente merece a “riqueza”.

pos-modernidade

Deixe um comentário